Reforma Administrativa no Estado Espanhol privatizou a saúde

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*Por Cacau Pereira

No artigo anterior, vimos que a Reforma Administrativa em Portugal introduziu uma série de mecanismos que alteraram substancialmente o formato de serviço público daquele país. Dentre eles, a simplificação das carreiras, a extinção de diversos órgãos públicos, o fim da progressão por tempo de serviço, a regra dois por um para novas contratações (uma nova entrada somente a cada duas aposentadorias) e a entrada lateral no serviço público. Comparamos esses dispositivos com as mudanças trazidas, no Brasil, com a PEC 32/2020. Foi possível identificar bastante similitude entre as propostas, todas elas emanadas do Banco Mundial e outros organismos multilaterais.

Vamos agora analisar o outro país ibérico, a Espanha, que também passou por um processo de reformas administrativas importante, principalmente na área da saúde. As reformas da administração na Espanha também estão relacionadas à crise econômica mundial, iniciada em 2008. Desde então, os governos vêm aplicando medidas de austeridade contra o povo.

Foi no ano de 2012 que essas políticas ganharam maior centralidade. No dia 20 de abril daquele ano, foi editado o Real Decreto-Lei nº 16, excluindo da cobertura gratuita de saúde os imigrantes considerados ilegais naquele país, medida de natureza discriminatória e xenofóbica.

Na virada para 2013, o governo central anunciou uma série de leis relativas à administração. Essas medidas incluíam um socorro ao chamado terceiro setor (organizações não governamentais) da ordem de € 687 milhões, para “viabilizar” a continuidade da atuação dessas entidades na área de assistência social, incluindo apoio às famílias, mães, crianças, idosos e pessoas com deficiência.

Naquele momento, também o governo de Madrid, a capital, anunciou uma medida de maior impacto: o início da privatização do Sistema Nacional de Saúde (SNS), desassistindo cerca de 1,5 milhão de espanhóis que tinham cobertura pelo serviço público. As privatizações atingiram os centros de atendimento locais (postos de saúde) e também os hospitais públicos. A administração desses equipamentos foi passada à iniciativa privada, que passou a cobrar pelos serviços.

As semanas anteriores haviam sido de intensa agitação sindical. Durante cinco semanas, os servidores da saúde protagonizaram uma greve de resistência à privatização. 6 mil cirurgias e 40 mil consultas deixaram de ser realizadas. Essas manifestações ficaram conhecidas como Marea Blanca, devido à cor dos uniformes dos profissionais da saúde.

Mas a pressão não bastou para evitar o início do desmonte do sistema e a privatização da saúde coroava um ciclo de dois anos de severa austeridade, com cortes orçamentários que beiravam os € 14 bilhões nas áreas da saúde, educação e assistência social.

O desmonte de um sistema de saúde eficiente, público e universalizado

A organização administrativa na Espanha é bem diferente do Brasil. O país tem três níveis de governo: central, regional e local, com grau elevado de autonomia política e financeira. A Constituição de 1978 havia assegurado o direito à saúde e criado um sistema público universalizado, organizado no plano regional pelas regiões autônomas.

O financiamento, no entanto, era em coparticipação, com contribuição das empresas e dos trabalhadores, complementadas por transferências do Estado. A partir de 1999, os gastos foram assumidos pelos orçamentos regionais, essencialmente da receita de tributos.

Com o início da privatização dos serviços de saúde em Madrid abriu-se caminho para que o mesmo ocorresse em outras regiões, como em Castela-Mancha e Valência. Em outras regiões começaram a pipocar outros modelos de privatização, como as concessões administrativas e o modelo cooperativado para novos hospitais. Já a Catalunha optou por um modelo de terceirização, contratando prestadoras de serviços.

O legado da centralização do sistema de saúde no Estado espanhol, que gerou uma das melhores redes de atendimento universalizada em solo europeu, ruiu, abrindo caminho para a precarização dos serviços e seletividade na oferta dos serviços, atingindo, além da comunidade imigrante, os jovens e trabalhadores de baixa renda.

Parte do serviço seguiu público, mas cada vez com maiores carências. Outra parte foi privatizada. Com isso, a oferta gratuita de medicamentos também foi desmontada, com diminuição expressiva do fornecimento de remédios. E, ainda, o serviço de transporte por ambulâncias – semelhante ao SAMU brasileiro – foi privatizado.

O arrocho salarial se abateu sobre os profissionais da saúde, com queda sensível na qualidade de vida do segmento. A jornada de trabalho foi ampliada e as férias foram reduzidas. Essas reformas trabalhistas tiveram impacto direto na vida dos servidores públicos.

Assim, o fracionamento do antigo SNS atingiu, principalmente, as camadas mais pobres da população, criando um sistema híbrido (público e privado) cada vez mais privatizado ou de difícil acesso à população.

O serviço público espanhol passou por outras modificações, mas a reforma do sistema de saúde foi a mais significativa. Ainda assim, possui hoje um percentual de servidores superior numericamente ao Brasil. A Espanha tem cerca de 14,5% da sua força de trabalho empregada no setor público. A maioria ainda é contratada por concursos públicos e detém estabilidade no emprego. Os servidores são submetidos a avaliações de desempenho.

Um dos grandes impactos das reformas na Espanha foi a desvalorização salarial. Houve uma redução drástica dos valores dos vencimentos, que hoje tem um teto de aproximadamente dois salários mínimos. O salário mínimo, naquele país, está na casa de € 1.000,00, um valor insuficiente para a manutenção de uma família.

Pandemia do Coronavírus expõe o fracasso da privatização do sistema de saúde na Espanha

Em março de 2020, o Ministério da Saúde da Espanha decidiu reestatizar diversos equipamentos de saúde privatizados, incluindo hospitais de grande porte, durante a pandemia. A medida foi tomada para garantir atendimento à população. A Espanha, naquele momento, despontava como a sexta nação mais afetada pelo COVID 19, apesar de ter uma população relativamente pequena (menos de 47 milhões de habitantes).

Na justificativa do decreto, o governo afirmou, de maneira cínica, que a medida estava sendo tomada porque os hospitais públicos não estavam conseguindo atender a demanda das pessoas necessitadas, escondendo o fracasso da política de privatização e mercantilização da saúde naquele país.

A reforma proposta pela PEC 32/2020, no Brasil, traz embutida mecanismos muito parecidos aos que foram adotados e fracassaram em solo espanhol. Dentre eles, podemos destacar a possibilidade de extinção de autarquias e fundações por decreto, a cessão de equipamentos públicos para a iniciativa privada e o fim de diversos direitos, que levarão ao arrocho salarial e ao desestímulo dos servidores.

É mais um exemplo que demonstra que a reforma proposta não foi pensada a bem do serviço público e da população, mas imita iniciativas que fracassaram flagrantemente em outros países, cujas populações tem poder aquisitivo mais elevado do que no Brasil, mas não conseguiram suportar o ônus dos serviços de saúde privatizados.

**Cacau Pereira é advogado com especialização em Direito Público, Mestre em Educação e pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps).

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Autor

Assessoria de Comunicação do Sinditest-PR

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