Reforma Administrativa no Brasil e modelos internacionais: o caso de Portugal

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*Por Cacau Pereira

A Reforma Administrativa proposta pela PEC 32/2020 é apresentada pelos seus defensores como necessária à adequação do Estado e da máquina pública à realidade brasileira. Para tentar convencer a maioria, são utilizados muitos argumentos que buscam confundir a população.

Um deles é o que afirma que o Brasil tem muitos servidores, quando, na verdade, apenas 12% da força de trabalho está empregada no setor público, o que equivale a 5,5% do total da população. Comparativamente, a média de 32 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 21%. E falta mão de obra em muitas áreas, como a saúde, o INSS, na fiscalização, dentre outras.

Outro argumento apresentado é o da necessidade de combate aos privilégios. Aqui a distorção é ainda mais grave. A maioria dos servidores não tem salários altos. E os agentes públicos e políticos que gozam de vantagens e privilégios – como os ganhos acima do teto, auxílio moradia, etc. – estão fora da PEC, como os parlamentares, juízes e militares das forças armadas. Nesses, a reforma não vai encostar um dedo.

Por fim, a propaganda de parte da grande imprensa e do governo bate na tecla de que os servidores são os responsáveis pela má qualidade no serviço público, quando, na verdade, também são vítimas. O orçamento vem sendo cortado ano a ano e a EC 95 limitou os gastos públicos por 20 anos. Com isso acabaram os concursos e os salários estão congelados. Muitos servidores se aposentaram e não são chamados novos para substitui-los. A terceirização vem aumentando e tudo isso contribuiu para piorar a qualidade dos serviços ofertados pelo Estado.

Tenta-se, então, criar um clima artificial de que essa reforma é necessária e teria sido concebida para atacar essas “mazelas” do serviço público brasileiro. A propaganda pró reforma se apoia na dura realidade de desemprego e da precarização do trabalho da grande maioria da nossa população. Os direitos mínimos dos trabalhadores do Estado são, então, apresentados como benesses.

Nesta PEC 32, como em outras contrarreformas, o que temos é a importação de modelos já aplicados em outros países, todos de inspiração neoliberal.

O conceito presente se baseia em arquétipos inspirados pelo Banco Mundial e outras agências internacionais. Atende aos apelos do mercado para que os serviços públicos sejam privatizados, transformando os direitos das pessoas em mercadorias e serviços que passarão a ser ofertados pelo setor privado, retirando do Estado a obrigação da proteção social universalizada.

Neste artigo, iniciaremos um debate sobre algumas proposições da reforma e demonstraremos como essas propostas não tem relação com a realidade brasileira, mas sim com os modelos privatistas inspirados pelo Banco Mundial. Começaremos pelo caso de Portugal.

Redução das carreiras

Naquele país, a reforma começa em 2006, com o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (Prace), que acabou com diversos órgãos estatais e reduziu o organograma original de 518 para apenas 331 instituições. Foram extintos direitos importantes, como o 13º e 14º salários e alguns subsídios. Os servidores inativos foram afetados, com a redução dos valores dos benefícios e aumento das alíquotas de contribuição. O salário mínimo também ficou congelado – abaixo de € 500 – entre 2011 e 2014.

A reforma ganhou mais força a partir de 2008, na esteira da explosão da crise econômica internacional. O Produto Interno Bruto (PIB) português encolheu e o desemprego alcançou 17%. O país recorreu a empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e à União Europeia. Uma nova reforma da administração pública foi uma das exigências para que os empréstimos – na ordem de € 78 bilhões – fossem realizados.

O ataque mais forte foi sobre as carreiras, ainda em 2008. Os dois argumentos para mexer na carreira dos servidores portugueses foram os mesmos que estão sendo utilizados no Brasil: a estrutura administrativa seria muito complexa e o custo da mão de obra muito elevado. Assim, as carreiras existentes foram substituídas por três carreiras gerais e algumas poucas específicas. A unificação foi feita em três níveis: o nível básico, o nível intermediário e o nível superior. Foram preservadas as carreiras específicas de alguns segmentos, como os profissionais da saúde e da educação, serviços públicos “federalizados” naquele país.

O resultado foi uma redução significativa do número de servidores, colocando o país numa posição bastante abaixo da média da OCDE. Ainda assim, Portugal possui um efetivo de servidores proporcionalmente maior ao do Brasil, na casa dos 15% naquele país, atualmente. O Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou dados que estimam uma redução de cerca de 30.000 professores da pré-escola e da educação básica em 10 anos (entre 2006 e 2016).

A regra 2 por 1 nas novas contratações

A reforma também estabeleceu que a reposição de mão de obra no serviço público seria feita na proporção de um novo servidor contratado para cada dois que se aposentassem. Esse modelo está implícito nas ações do governo brasileiro. Não está previsto diretamente na PEC 32, mas é a orientação com a qual o governo já vem trabalhando.

De 2017 a 2019 tivemos, no Brasil, uma redução de 26.324 servidores federais na ativa, caindo de 634.157 para 607.833, uma queda superior a 4%. Somente o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) reduziu o seu quadro em 4.645 servidores em 2019, uma diminuição de aproximadamente 18% do efetivo do órgão.

A ausência de reposição dessa mão de obra foi decisiva para gerar a longa fila de espera para o pagamento de benefícios atrasados, prejudicando em muito a população. E, ao mesmo tempo, a exploração do trabalho dos servidores do INSS aumentou. E muito. Em 2019, o órgão movimentou mais de 9,4 milhões de processos, com crescimento do volume total, a despeito da redução de servidores.

Além da regra 2 por 1, a reforma em Portugal introduziu o fim da progressão por tempo de serviço, também prevista na PEC 32, que acaba com a progressão horizontal e com os adicionais por tempo de serviço, introduzindo mecanismos de progressão somente por avaliação de desempenho – totalmente controlada pelo gestor – e critérios de meritocracia.

Entrada lateral no setor público

Outro mecanismo implantado em Portugal foi a chamada entrada lateral no serviço público, já adotado também em outros países, como a Grã Bretanha. O objetivo seria atrair profissionais qualificados do setor privado, que seriam recrutados não para o início da carreira, mas para o topo, flexibilizando o ingresso no serviço público.

No modelo tupiniquim da reforma esse mecanismo encontra-se agasalhado na figura dos cargos de liderança e assessoramento. Esse novo vínculo, previsto na PEC 32, seria recrutado por seleção simplificada e ocuparia, com exclusividade, todas as funções gratificadas e comissionadas hoje exercidas por servidores de carreira. Um verdadeiro desestímulo aos atuais servidores, além de um evidente aparelhamento do serviço público. Afinal, uma seleção simplificada pode constar apenas de análise de currículo e uma entrevista, o que deixaria nas mãos da administração as indicações de cunho político para esses cargos.

A resistência nas ruas atrasou, mas não impediu a aprovação da reforma

Muitos protestos ocorreram em Portugal no enfrentamento à reforma, com grandes manifestações contra a Troika.[1] A Associação Nacional das Freguesias conseguiu levar 200 mil pessoas num grande ato público. As freguesias são a menor divisão administrativa daquele país, algo semelhante aos distritos ou subprefeituras, nas capitais.

A proposta dividiu os meios políticos e motivou grandes debates. Apesar disso, depois de um longo período de tramitação, foi aprovada em novembro de 2012. Às custas de uma economia com o setor público superior a € 3 bilhões por ano, em 2019 Portugal praticamente zerou seu déficit público. A fragilidade do modelo ficou demonstrada, mais uma vez, com a pandemia do Covid 19 e, em 2020, o país fechou com novo déficit nas contas públicas e uma queda do PIB estimada em 8%.

Em Portugal, governos de diversos matizes e partidos – de centro, centro-direita e da esquerda tradicional – aplicaram as reformas, demonstrando acordo na gestão da economia, apesar dos discursos políticos aparentemente contraditórios.

Como vimos, a proposta de reforma administrativa, no Brasil, não tem nada de novo nem se adequa à nossa realidade. Trata-se de um modelo copiado de outros países, além de ter objetivos fiscais bem definidos, que privilegiam o rentismo e o mercado financeiro.

No próximo artigo daremos seguimento a essa discussão, tratando da reforma administrativa na Espanha, que teve muitos reflexos no setor da saúde pública.

[1] Nome dado ao triunvirato formado por Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e Comissão Europeia

**Cacau Pereira é advogado com especialização em Direito Público, Mestre em Educação e pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps).

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