Por dentro das transformações do serviço público: Uma história mal contada – digitalização nem sempre rima com qualidade do serviço público

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 Por Cacau Pereira

No artigo passado apresentamos aos nossos leitores o debate sobre a utilização das tecnologias digitais no serviço público. Vimos que a utilização de ferramentas digitais é hoje uma realidade no setor, principalmente a partir dos anos 2000. A contradição é que aproximadamente 50 milhões de pessoas estão fora do mundo digital no Brasil, seja porque o serviço é caro ou por não possuírem conexão à rede. Pensar na digitalização dos serviços públicos sem universalização do acesso gratuito à internet significa repassar a conta da inovação tecnológica para o bolso do cidadão, prejudicando, principalmente, os mais pobres.

Neste novo artigo vamos abordar como o tema da digitalização vem sendo embrulhado e vendido como solução milagrosa para as mazelas do serviço público, mas nem sempre isso é assim.

Antes de mais nada, não temos nenhuma posição conservadora quanto à adoção de novas tecnologias no serviço público ou no setor privado da economia. Pensando no tripé que compõe as forças produtivas na sociedade – as matérias primas; a maquinaria/tecnologias e a força de trabalho humana – não temos dúvida de que a inovação tecnológica pode ser um instrumento fundamental para aliviar a carga de trabalho de homens e mulheres – que são a principal força produtiva – permitindo a redução da jornada de trabalho, a redução do desgaste físico e emocional que o trabalho impõe aos assalariados.

Mas, isso vem ocorrendo, de alguma forma, no setor privado ou no setor público? Ou a lógica da inovação tecnológica está colocada a serviço da maximização dos lucros das empresas e da redução dos custos na administração pública?

A segunda  alternativa nos parece ser a recorrente. Não sem razão, a PEC 32/2020 – da Reforma Administrativa – trazia no seu texto inicial novos princípios constitucionais, dentre eles o da inovação, inserido numa visão empresarial de gestão pública que vem ganhando espaço no Brasil. O governo federal, na tramitação da Reforma Administrativa, nunca escondeu seu objetivo de redução dos gastos com a máquina pública e nos proventos do funcionalismo.

Portanto, é importante que o servidor entenda que o conceito de governo digital não diz respeito apenas à adoção de soluções tecnológicas que propiciem ganhos de eficiência na gestão pública, coisa a qual ninguém se contrapõe. Mas, fundamentalmente, e aí está o xis da questão, ao incremento de um modelo empresarial de gestão pública, que pressupõe a redução dos custos ao máximo possível, mesmo que isso implique na piora da qualidade na prestação do serviço público e na desproteção dos setores mais vulneráveis da população.

Hoje, o conceito de governo digital se alargou e abrange também a adoção de instrumentos que possibilitem que Estado e sociedade interajam por meios digitais, o que alguns chamam de governo aberto. São os canais colocados à disposição do público e que, supostamente, permitiriam a fiscalização e a promoção da transparência nas ações de governo.

 O discurso ideológico por trás da legislação em vigor

O governo digital tem na Lei 14.129/2021 os princípios e diretrizes que norteiam essa política pública.

O discurso oficial busca seduzir o cidadão que necessita acessar os serviços públicos e sofre com a burocracia e outras dificuldades. Desburocratização, transparência, modernização, rapidez, simplificação, agilidade… Essas são algumas das expressões previstas na Lei 14.129.

Mas, na realidade, a substituição de canais de atendimento presenciais pelas plataformas digitais limitam, para amplos setores, o acesso UNIVERSALIZADO (em caixa alta mesmo) a esses serviços públicos.

No artigo passado falamos das longas filas digitais para o atendimento no INSS. A digitalização dos serviços desse órgão demonstrou-se cruel e desumana com aposentados, pensionistas, gestantes, acidentados e outras pessoas que precisaram recorrer à previdência no período da pandemia.

Recentemente, um bug no sistema da estatal de informática que atende o governo federal deixou milhares de anistiados políticos sem receber seus vencimentos por três meses. O Ministério da Economia havia convocado um recadastramento num prazo exíguo, de apenas um mês. Vários anistiados não receberam qualquer comunicação formal da necessidade do novo cadastro. Com o corte do pagamento, essas pessoas compareceram aos bancos e fizeram a prova de vida. Mas, por alguma razão “misteriosa”, o pagamento não veio, nem no primeiro nem no segundo mês.

Sem canais de atendimento presencial, os anistiados passaram a perambular por diversas plataformas buscando soluções, como gov.br, falabr e Sigepe, dentre outros. Quem conseguiu cadastrar uma reclamação na plataforma do falabr teve que esperar um mês por uma resposta. Um problema aparentemente simples demorou três meses para ser resolvido.

Esse exemplo nos mostra que o processo de digitalização do serviço público é bem mais complexo. Sem atendimento humano, presencial, na ponta, o usuário do serviço público fica sem rumo para a solução de questões muito simples. Daí a importância do servidor público, insubstituível, nas suas funções.  

Conversando com sindicalistas do Sindppd do Rio Grande do Sul, eles nos trouxeram a explicação para o problema dos anistiados: a redução da mão de obra no Serpro, que não realiza concurso público há muitos anos, tem um déficit enorme de mão de obra especializada, impediu que esse problema, relativamente simples, fosse resolvido num prazo razoável. A consequência desse processo foi a suspensão do pagamento para centenas de pessoas, gerando custos pessoais e familiares incalculáveis.

Como se vê, a digitalização atabalhoada de processos combinada com redução de mão de obra no serviço público podem fazer muito mal à população. Um equilíbrio nessa equação se faz necessário e é o mínimo que os servidores devem exigir, preservando a qualidade do atendimento à população e evitando a deterioração de suas condições de trabalho.

Cacau Pereira é pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS) e colabora com o Departamento de Formação do Sinditest-PR.

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Autor

Assessoria de Comunicação do Sinditest-PR

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