Reforma Administrativa no Brasil (2020-2025) – Por Dr. Paulo Henrique Vida Vieira

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1. Contexto e “mapa do processo legislativo”
A PEC 32/2020, que propunha ampla reforma administrativa, ainda tramita na Câmara dos Deputados, sem ter sido votada em Plenário. Em paralelo, o Ministério da Gestão e da Inovação MGI – vem promovendo uma agenda de transformação do Estado com foco em gestão estratégica, digitalização e revisão de carreiras. No cenário político atual existe pressão para avançar uma nova reforma (seja a PEC 32 ou um texto alternativo via PEC , Lei Complementar ou Lei Ordinária), e ao mesmo tempo forte resistência institucional de servidores e entidades sindicais, dado o risco de precarização.

2. O que se coloca em jogo – vetores principais da proposta
: Vínculos e estabilidade: há proposta de restringir estabilidade excetuando apenas às “carreiras típicas de Estado”, definidas por lei complementar. Isso desloca o núcleo da garantia da Constituição para futuro normativo e gera risco de instabilidade para outras carreiras.
: Cargos, carreiras e mobilidade: prevê-se reestruturação de cargos, possibilidade de mobilidade ampla entre órgãos, e um quadro geral de cargos que pode fragilizar a especialização e lotações estáveis.
: Lideranças e assessoramento: propõe-se ampla expansão de cargos em comissão e funções de confiança nomeadas sem concurso, em nome da gestão por resultados. O risco é a politização e a rotatividade excessiva, comprometendo memória institucional.
: Benefícios e “combate a privilégios”: a reforma pretende limitar ou vedar alguns adicionais, licenças-prêmio, férias superiores, entre outras vantagens. Dependendo do texto, tais medidas podem afetar servidores atuais e futuros, colocando em risco direitos incorporados.
: Gestão por desempenho e avaliação: vínculo de progressão e permanência a avaliações periódicas, com possibilidade de desligamento por desempenho. Se não houver garantias de processo, critérios objetivos e revisão, isso pode virar mecanismo de pressão.
: Cooperação com entes privados e “desvinculação”: aumento de parcerias e instrumentos de cooperação e “desvinculação” processual do Estado. Isso abre caminho para privatização indireta de políticas e terceirização de atividades-meio e, em casos extremos, de áreas-fim.
: Digitalização, identidade única e rastreabilidade: avanços positivos em termos de gestão, carta digital do servidor, identidade única, metas governamentais, mas trazem risco se usados para controle punitivo ou substituição de garantias.

3. Principais impactos jurídicos e práticos para servidores federais
: Estabilidade: protege impessoalidade e continuidade do Estado. Reduzi-la a poucas carreiras por lei complementar gera contingência política e fragiliza a administração profissional pública.
: Mobilidade ampla e “quadro geral”: pode desestruturar equipes, punir dissidência por meio de remoções técnicas e enfraquecer conhecimento institucional. Requer balizas como devido processo, motivação, critérios objetivos e controle externo.
: Aumento de cargos de livre nomeação: sem limites proporcionais e processo seletivo público, há risco real de aparelhamento e perda da impessoalidade.
: Benefícios e direitos: ajustar para futuros pode ser legítimo, mas retroagir ou atingir vantagens incorporadas atinge segurança jurídica e expectativa legítima dos servidores.
: Avaliação de desempenho: se estabelecida sem critérios auditáveis, contraditório e ampla defesa, pode ser instrumento disciplinar e porta para demissões em massa. Meritocracia, bônus como 14º. Salário aos mais próximos ao administrador;
: Parcerias/privatização indireta: a transferência de capacidade estatal para terceiros, sem salvaguardas, fragiliza carreiras, empobrece políticas públicas e mina contratos sociais.

4. O que há de novo no discurso de 2025 – e como interpretar criticamente
: O projeto atual centraliza o discurso em “modernizar” com digital, metas e pessoas, e anuncia várias medidas de transformação até 2025. Contudo, embora a linguagem mude, muitos dos vetores clássicos da reforma administrativa permanecem – o que exige vigilância crítica para que “eficiência” não se transforme em flexibilização de garantias. No Congresso, fala-se em nova PEC baseada nesses três eixos (gestão estratégica, digital e pessoas) com “combate a privilégios”. Trata-se de agenda em construção – o momento é de intervenção técnica, negociação e mobilização.

5. Estratégia jurídico-sindical para evitar precarização e privatização
A) No Parlamento:
: Blindar constitucionalmente a estabilidade como regra para cargos efetivos, não apenas “carreiras típicas de Estado”, exigindo emenda constitucional e não simples lei complementar.
: Inserir cláusulas pétreas funcionais no dispositivo de reforma, definindo avaliação de desempenho com critérios objetivos, instância recursal externa e participação social.
: Limitar de forma expressa os cargos de confiança e funções de livre nomeação, definindo processo seletivo público e proporcionalidade.
: Vedação expressa de terceirização ou cooperação que implique substituição de carreiras de Estado ou de atividade-fim da administração pública.
: Garantias de direitos adquiridos para atuais servidores e regime de transição justo para novos servidores.

B) No contencioso constitucional:
: Em caso de aprovação de texto lesivo, propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), ADC ou ADPF, atacando violações à separação de poderes, impessoalidade/moralidade, segurança jurídica e núcleo essencial da estabilidade.
: Controle difuso/incidente: contestar atos concretos de avaliação, remoção punitiva ou terceirização abusiva, com perícias de impacto, nulidades e desvio de finalidade.

C) No controle externo:
: Utilizar o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) para criar matrizes de risco para cargos de liderança, governança de parcerias, transparência algorítmica e rastreabilidade de medidas de avaliação de desempenho ou mobilidade forçada.

D) Na negociação coletiva e mesas setoriais:
: Defender cláusulas de proteção contra mobilidade punitiva, comitês paritários para avaliação, banco de capacitação permanente, gatilhos automáticos de reajuste/inflacionamento para preservação da atração e retenção de talentos.
: Apostar em narrativa propositiva: não só resistência, mas proposição de carreiras fortes, concursos regulares, governança de dados, transparência e valorização do servidor para entregar à sociedade.

6. Argumentos-chave para seu discurso
: Serviço público forte é parte da civilização democrática: estabilidade e carreira não são privilégios, mas mecanismos de impessoalidade e anticorrupção.
: Modernizar, sim; precarização, não: digitalização, métricas e identidade única devem servir ao fortalecimento, não à flexibilização de garantias.
: Privatização indireta é atalho perigoso: sem diques normativos adequados, “cooperação” desloca o núcleo estatal para terceiros e esvazia o Estado.
: Direitos adquiridos e transição: toda reforma responsável precisa preservar o passado e normatizar o futuro com respeito à segurança jurídica e expectativa legítima.

7. Pautas e alternativas do movimento político-sindical (2025)
: Atuar com foco em comissões e grupos de trabalho no Parlamento para influenciar a redação do texto e garantir emendas de blindagem.
: Mobilização intersindical e atos públicos nacionais para pressão, exigindo audiências públicas, estudo de impacto e participação social.
: Produção de notas técnicas que quantifiquem custos de rotatividade, perda de especialização, impacto em políticas públicas e demonstrem o valor real dos servidores para a sociedade.
:  Construção de narrativa propositiva: defender carreiras valorizadas, reivindicar concursos, governança de dados e transparência, em sintonia com modernização, mas protegendo direitos.

* PAULO HENRIQUE VIDA VIEIRA, OAB/PR – 18.141 Advogado de Servidores Públicos Federais

 

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